“Gosto tanto do meu lugar que costumam me chamar de suburbano convicto”. Assim Alessandro Buzo se apresentou durante debate no último dia do Apalpe. Legal né? Mas só dá pra se ter ideia do que foi o Apalpe durantes esses três dias de atividades onde a palavra da periferia esteve presente não só nos arredores da cidade, mas no centro. Na verdade, a palavra da periferia foi o centro das atenções na cidade do Rio. No Rio, mas teve representação nacional. De Buzo, Mano Brown e Ice Blue de São Paulo, passando pela galera da Baixada Fluminense no Rio, chegando até Cannibal e Aderaldo representando o Nordeste brasileiro.
A festa começou na quinta-feira, dia 7 de outubro. Uma quinta véspera de feriado que levou mais de duzentas pessoas a lotarem o Salão Dourado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um salão “nobre” dentro de um espaço comumente aberto quase que exclusivamente às elites. Mas as estrelas da noite eram duas figuras que não representavam a elite brasileira, dois moradores da periferia de São Paulo, que nunca chegaram perto de concluir uma graduação numa universidade. Mas foram as estrelas. A voz era deles. Quem estava lá queria ouvir Mano Brown e Ice Blue, integrantes do grupo de rap Racionais MCs. Dois representantes de uma cultura que não é nova, mas que tem sua visibilidade dificuldade pelos veículos tradicionais de comunicação. Esse tempo está acabando. Brown dá o recado: “Estamos vivendo um processo, uma transformação. Esse evento aqui é um exemplo de que alguma coisa está mudando”. É a palavra da periferia tomando seu lugar. Que não é nem de longe limitado à periferia.
Não, não parou por aí. Ainda na noite de quinta-feira, Mano Brown e Ice Blue, após pedidos da plateia de ~canta, canta, canta”, descobriram um piano atrás do telão. Daí foi um passo pra tirar o telão e encontrar William Magalhães, da banda Black Rio, e começarem uma apresentação tão ou mais histórica quanto o debate. Willian no piano e Brown rimando. Não sem antes Mano Brown apontar para a estátua de um “príncipe” que há no Salão Dourado da Universidade, e se perguntar: “Quantos pretos e índios essa bacana não matou?”.
A noite fechou com o público em delírio. Depois de assistir Mano Brown e Ice Blue discutindo com o público, debatendo. Coisa rara com os dois. Mas ao que parece, a ideia é que deixe de ser raro. “Se eu não respondi alguma pergunta, me chama de novo que eu volto”. A dupla também deixou claro que é preciso conversar, dialogar. O Apalpe não acabou, “está apenas começando”, lembra Marcos Vinicius Fautini, idealizador do projeto e também da Escola Livre da Palavra, que teve seu lançamento na sexta-feira dia 8 de outubro. Outro movimento histórico na Lapa. “A Lapa não é só da Ambev”, lembra, reiteradas vezes, Faustini. E na sexta, a palavra da periferia esteve presente.
Às seis da tarde de sexta, Ronaldo Correia de Brito, escritor, se sentiu “apalpado pelo evento”. Além da formação em Medicina, Ronaldo disse que no mesmo período frequentou outra Universidade, um lugar com grandes mestres produtores da cultura popular. Ela freqüentou a periferia de Recife. Depois de suas respostas efusivas – e porque não engraçadas –, Ronaldo participou também da inauguração da Escola Livre da Palavra. Já Heloísa Buarque de Holanda foi surpreendida com uma homenagem: a sala de cultura digital da Escola leva seu nome. “Estou tão feliz, é uma honra. Essa coisa de palavra e mídia digital vai dar samba, a gente vai mudar essa cidade, tenho certeza!”, enfatizou.
Depois de Ronaldo, que afirmou que erudito é o popular, a Lapa ficou pequena. Foi apalpada de variadas e incontáveis formas. Numa Ciro abriu o palco, abrindo os apalpes seguintes. Os apalpianos – cursistas do Apalpe – lançaram então a revista Apalpe, com contos das 35 pessoas que iniciaram o Apalpe (e que vão continuar intervindo na cidade). Cada um dos trinta e cinco também tinha um pôster colado nas paredes laterais da Sala Cecília Meireles, com um trecho de seus contos.
Ah, não, a intervenção nem tinha começado. Teve Bolo Literário, Conto no Ponto do ônibus, brigadeiro pra quem escutasse o conto mais doce da revista. Teve uma morta mais viva que muita gente, gente sendo pintado por literatura da melhor qualidade, goiaba sendo distribuída, gente falando de onde veio, que não era nem Cascadura nem Madureira, mas Engenheiro Leal – se não sabe onde é, só sendo apalpiano pra saber. No meio disso tudo – e também fora disso, o Carrinho Ambulante Literário passando pela Lapa, divulgando cultura. Esse quem não viu, pode ficar tranqüilo. Oportunidades não faltarão. Faustini já mandou o recado. Vai ser o primeiro a usar, pra vender seu livro – Guia Afetivo da Periferia – pela Lapa. Na verdade, a venda ele já vem fazendo há tempos – desde que lançou – , mas agora além do livro, tem a novidade do Carrinho Literário.
Acabou? Acabou na sexta, onze da noite. Porque no sábado, 10 da manhã, as crianças já estavam a postos para a Oficina Apalpinho. Trinta pimpolhos não seguiram o roteiro e fizeram literatura de gente grande. Passearam pela Lapa e desenharam o mapa de suas casas até os Arcos da Lapa. E depois escreveram.
As crianças foram, e os adultos começaram a aparecer. No início da tarde, Aderaldo Luciano iniciou a oficina de cordel. “Cordel é literatura da maior qualidade”, sentenciou. Aderaldo chegou desconstruindo a idéia de que o cordel é uma “arte simples, feita por analfabetos”. Depois de ouvir Aderaldo, só louco pra achar que cordel é simples, e mesno ainda que possa ser feito por analfabetos. O escritor ainda lembrou que nunca se produziu tanto cordel no Brasil como na atualidade e que o cordel é hoje a única literatura originalmente brasileira que sobreviveu com o passar dos séculos. Para ele, a academia não nutre respeito pelo cordel, e bradou: “a academia morreu, hoje o que existe é um amontoado de egos”.
[Conheça o blog de Aderaldo Luciano: http://adercego.blogsom.com]
Depois disso o tempo só esquentou – apesar da chuva que caia do lado de fora da Cia. dos Artistas. Marcelo Moutinho e Vinicius Reis, mediados por Écio Salles, iniciaram o primeiro debate do dia. O mediador lembra que o “grande lance é que até pouco tempo quem falava da periferia era quem é de fora. Hoje a gente também está fazendo”. Vinícius Reis entra em acordo. No que diz respeito ao jornalismo cultural, “essa impressa se que se restringia ao Estação Botafogo e ao Parque Lage [áreas nobres do Rio de Janeiro] está acabando, hoje a gente busca informações em blogs, por exemplo”.
No decorrer do debate, Alessandro Buzo, na plateia, pergunta a Marcelo Moutinho: “O que Madureira representa pra você hoje?”. A resposta veio com lágrimas, emocionada: “É a minha terra, cara…”
Na sequência, Cannibal, da banda Devotos de Recife, Heraldo HB, do Cineclube Mate com Ango de Duque de Caxias (Baixada Fluminense) e Alessandro Buzo, de São Paulo – mediados por Érica Peçanha, discutem a palavra como militância no território. Cannibal, abrindo a palavra, fala que, embora Recife seja conhecido pelo movimento mangue, no rádio de lá – assim como aqui – só se toca axé e brega. “Aí a gente resolve ir pela rádio comunitária. A ideia da banda Devotos é alterar a realidade social através da música”, diz.
Heraldo HB, continuando o debate, levanta a bola e é aplaudido: “há uma privatização das palavras. Se você fala “oi”, “claro”, “vivo”, você está falando uma marca. Privatizaram até a palavra “livre”! Mas isso não impede a manifestação dos artistas da periferia. É o que demonstra Alessandro Buzo. “Pensaram que a gente não sabia nem ler, e agora a gente está escrevendo livro”, diz. Só Buzo já escreveu seis, e o próximo está por vir.
Entre o fim do último debate e o início do Sarau do Apalpe, Faustini anunciou: “A terra de discussão sociológica acabou”. Era hora de diversão mostrando a palavra da periferia. Teve gente participando de fora do Rio, como foi o caso do poeta Sérgio Vaz, da Cooperifa de São Paulo.
Diversão, arte, literatura, cultura, debate, produção, revolta, revolução, transformação, representação. Diálogo, construção, mudança, grafismo, imagem, visibilidade. Haveria uma lista de palavras, e não seria possível descrever esses três dias de atividades culminadas pelo Apalpe. Foi muito ao mesmo tempo que foi pouco. Foi muito porque pouco tem sido construído coletivamente nessa área, e ao mesmo tempo foi pouco, muito pouco, pela produção que tem sido feita pelos moradores das periferias do Rio de Janeiro e do Brasil. Apesar da satisfação de participar e vivenciar os três dias, apesar de perceber a grandiosidade do evento, do momento histórico que ele representa para a cultura da periferia não apenas no Rio de Janeiro, fica um gostinho de quero mais. E isso é ótimo, vamos continuar apalpando e cutucando as culturas de nossas periferias pelo Brasil.
10 de outubro de 2010, uma data pra entrar pra história